quinta-feira, 7 de junho de 2012

aprisionados no tempo

« E foi assim, abrindo a gaveta à procura de qualquer outra coisa, que, sem aviso, me escorregou para as mãos uma fotografia tua tirada durante aqueles quatro dias. Fiquei a olhar-te longamente, longa, longa, longamente. E longamente me fui dando conta de que tudo aquilo acontecera mesmo: eu não o sonhara, durante vinte anos. Nisso, quando guardam para sempre um instante que nunca se repetirá, as fotografias não mentem - esse instante existiu mesmo. Porém, a mentira consiste em pensar que esse instante é eterno, que dois amantes felizes e abraçados numa fotografia ficaram para sempre abraçados. É por isso que não gosto de fotografias antigas: se isso alguma coisas elas reflectem, não é a felicidade, mas sim a traição - quando mais não seja, a traição do tempo, a traição daquele instante em que ali ficámos aprisionados no tempo. Suspensos e felizes, como se a felicidade se pudesse suspender carregando no botão "pausa" no filme da vida.»

Miguel Sousa Tavares - No teu deserto